quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Vizinho de Chopin, Marcel Proust e Oscar Wilde


Ao longo de boa parte da primavera trancaram-se num apartamento com o objetivo de fazer literatura. Pamela tinha 18 anos, dois olhos verdes, 1,78 metros e uma risada que quando vinha sacudia o ambiente. Livre, leve e doida. Seu sono era habitado por pesadelos compulsivos, sempre em vermelho e amarelo. Em seus sonhos uma imagem a perseguia: ele sempre aparecia em pé, no centro de um palco, vestido de couro marrom, com botas pontudas, cabeludo, e muito diferente de agora.

Com 27 anos, ele estava alcoólatra, obeso, cardíaco. Atormentado. Passava os dias dentro de uma banheira, com cigarros, heroína, uísque, e suas anotações estéreis. Pouco saía. E quando acontecia, preferia sempre a madrugada. Esperava pacientemente que a companheira se drogasse a ponto de ficar desacordada. Preferia caminhar sozinho. E então, ganhava as ruas. Sempre o mesmo destino: o banheiro da discoteca Rock’n Roll Circus. 

Hedre Lavnzk Couto

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Um Café



O meio da manhã estava cinza, e de dentro do Café parecia ainda mais inverno. Sentou-se à pequena mesa ao lado da grande vidraça que dava para a rua. Pediu um chá, quis um cigarro, abriu o jornal e esforçou-se para não ir diretamente à página de política. Quis um cigarro. Deu uma olhadela prudente em volta, notou que um casal fumava tranquilamente, enfim, pensou, que terra abençoada, ali se podia fumar. A gravata incomodou, tratou de aliviá-la.  Trouxeram-lhe o chá. Depois, churros. De um cheiro aconchegante. Lembrou-se de Alice. Notou que já ia pela metade do caderno de política, não havia resistido. Tudo estava tão silencioso. Pessoas comiam, e sequer se ouvia os tintilhar dos talheres. Gente educada de modos e traços elegantes. Um pequeno raio de sol atravessou o vidro e marcou o trecho do parágrafo que lia. Pôde ouvir pássaros. E escutou passos. Extremamente agasalhada. Sob um guarda-chuva, ela surgia, vinha caminhando leve e concentrada. Trazia os cabelos em chanel. Usava chapéu. Nas mãos, leite, pão e morangos. Só restou a ele findar o cigarro. E recordar-se de como era doce ir para casa tomar café.

Hedre L. Couto

domingo, 16 de outubro de 2011

A señorita Pola

Sentou-se à mesa. Tinha-se habituado naqueles dias a freqüentar aquele bar. Mas agora sozinha, havia soltado os cabelos escuros de forma a ocultar o rosto branco, do risco do contraste produzido pela meia luz do ambiente. Uma garrafa de rum fazia-lhe companhia.
Já estava pela metade e seu coração palpitava mais forte. Duas ou três lágrimas despediam lentamente e encontravam demorado amparo nas curvas de seus lábios. Fitou, compenetrada, o casal de dançarinos embriagados de Carlos Gardel. Mas não com inveja ou admiração. Desdém. Tinha-lhes profundo desprezo pelo desconhecimento da inevitável transitoriedade dos momentos felizes.
De repente, veio-lhe na memória o motivo de estar ali: O semblante dele. Mas também se recordou do seu próprio. Sabia que algo acontecia em seu interior. Há muito já não era a mesma. Já não sabia se queria as mesmas coisas. Preocupou-se: passou-lhe pela cabeça que já não era mais dona de si. Num sentimento dúbio, teve saudades e profunda repulsa do contentamento inicial da viagem. Os primeiros dias de hotel, o estilo peculiar de ambos praticarem o turismo. Nada convencionais. E concluiu que era justamente isso. Sim, naquele momento compreendeu o teor da angústia que a atormentava. Levantou-se. Caminhou até a janela de vidro, avistou dali o andar onde estavam hospedados. Luz apagada. Pensou estar começando enlouquecer. Havia viajado sozinha. Completamente sozinha nos últimos dois anos. Não havia ninguém em seu quarto.
Lembrou-se da casa no Brasil. De sua biblioteca. Da mesa de trabalho. Teve dúvidas se ainda existia um porta-retratos. Teve dúvida de si mesma. De tudo. Voltou à mesa. Mordia lentamente os lábios. Estava frenética. Tratava-se de um transtorno contido. Quis afrouxar um pouco a gola do casaco. Veio-lhe à memória o semblante dele. Veio-lhe o tango. Naquele momento detestou vigorosamente todos os argentinos. Pensou em mudar. Mas mudar para quem, ou para onde? Verdadeiramente, pensou ela, nunca tivera feito nada de útil em sua vida. Sua única certeza, naquele momento, era a terrível inveja que nutria da senhorita Pola.

Hedre L. Couto.