segunda-feira, 29 de outubro de 2018

o 8º andar da rua Delambre

esqueci-me de um rosto.
das feições de um rosto.
de um rosto,
já não me lembro.
os olhos do rosto,
todavia,
fitam-me os meus,
ainda hoje,
com doçura.

H. L. C.

da série 'meus poemas quase póstumos'

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

"quando a bruma se desfizer"

quem dera o sorriso
a noite
o ar
o sempre
quem dera a desconhecida manhã
a chuva
a casa
quem dera o sol
a linha do trem
quem dera o tango
ou uma bailarina poetisa
quem dera uma ilha
e lá apenas uma pequena canoa
e também um simulacro de roupa
para as omoplatas abrigar da tempestade
quem dera a prata
para dias de poucas falas
e o ouro
para quando o silêncio é poesia
quem dera nunca morresse
o brilho dos olhos


h. l. c.

da série 'coisas que falam de outras coisas'

sábado, 8 de setembro de 2018

paródia tentada

gaivotas voam
sobre o mar-platina.
as ondas bailarinas
parem outras ondas,
ondas meninas.
na América do Sul,
são dias frios,
neste agosto de ventos uivantes.
mar vasto mar
se meu nome fosse Ribamar
abaixo da linha do equador
não seria menor a confusão
seria a mesma peleja
mesmo diante da beleza
da vista do arpoador

H. L. C.

da série 'poesia sem solução'

domingo, 2 de setembro de 2018

verbete nº 7

nos fins de tarde,
lá, ao longe,
no mar-cor-de-platina,
patina,
lento,
o meu pensamento.

H. l. C.

da série 'poesia ao contrário'

sábado, 1 de setembro de 2018

multiverso

sul
amanhece
o céu-mar está cinza-azul
sob a música de Paul Bley e Gary Peacock (Mindset)
bate o coração
cujo outro está no leste
pulsa
pulsa
pulsa
reflete
repete
respinga
ainda
amanhece devagarinho
e o pensamento
e o mar
e o céu
tudo agora em leve verde-claro
leve azul-claro
ar fresco vastidão
há ouvidos do coração
grilos nos ouvidos
não olvido o coração do leste
meu rosto duas faces
minh'alma/holograma
imensidão
de viveres
Deus
a mandar-me bilhetinhos
tatuados
nos pés de uma paloma

H. L. C.

da série 'poesia em degrau'

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

adagium

compraremos uma mesa de bilhar
e nas noites de lua cheia
ouviremos velvet underground - pale blue eyes
a lua que tem estado sempre cheia
iluminando a água do mar
deixando-a esbranquiçada e graciosa
nas madrugadas
compraremos mesmo uma mesa de bilhar
e faremos apostas aleatórias
pensaremos em Chet Baker and Paul Bley
nas madrugadas
em que a água do mar calma e leitosa
abraçar a lua
compraremos uma mesa de bilhar
ela
sapateará sobre a mesa de bilhar
dançando entre garrafas
cantando she's a rainbow
esperaremos a aurora púrpura chegar
sentados à escada no degrau mais alto
a lua vagarosa já se vai ao longe
dela despencam dois versos de Shakespeare
cigarras cantam-os neste início de manhã

H. L. C.

da série 'poesia em degrau'



sexta-feira, 17 de agosto de 2018

verbete sem nº

o poema nasceu sem rosto.
impostor,
pediu-me a lixeira:
suicidou-se.

da série 'poesia ao contrário'

H. L. C.

sábado, 28 de julho de 2018

poema provisório

aboli
os sons dos passos
os sons da noite grande e clara
os sons da fala
as vistas beiras
as achegas dos quiçás
os pés da ladeira
o detrás do mar
o eclipse lunar
os véus ao léu
as sedas
as letras mortas
as pacas
a vastidão das metáforas guias
os cheiros
mandei às favas os fusos horários
de todo o mundo
e já pândego de mim e gim
em silêncio
lembrei-me de Amelie


H. L. C.

da série 'coisas que falam de outras coisas'


quarta-feira, 30 de maio de 2018

à queima roupa

e exigiu-me um poema
à queima-roupa
era meia noite
de meia lua
ela de lua
sentados ao ar fresco
de uma mesa de bar
na cidade velha
uma garotinha solitária
que já não tinha pai
que já não tinha mãe
já viajara o mundo
fantasiosa
que só tinha a dança
e uma receita de comida mexicana
e umas poucas lembranças
que quase chamou-se Joana
porque teve uma bisavó portuguesa
mas herdou o nome da norueguesa
gostava de Piaf
de azeitonas
de doce de leite argentino
de dormir nua
da sorte incerta
uma ou outra vez no ano se maquilava
se pudesse às vezes dormia muito
outras vezes pensava em estar sempre desperta
'linda garotinha chuvosa
doce manhã cinzenta de junho
aconchego quente da lã
fresco chá de romã'

H. L. C.



terça-feira, 17 de abril de 2018

poema trilegal

fui à Rua das Flores,
na tarde de ontem,
e, próximo das Casas Maria,
a moça conheci
de cujo nome já me esqueci.
hoje, voltei à dita rua,
e, num canto, mais para a Viela da Deusa Nua,
esperei, em vão, a moça voltar a passar...
me aborreci.
estranhamente,
voltei a casa cantando uma velha canção russa,
que fala de uma girafa
que telegrafa
a um camelo.

H. L. C.

da série 'poesia em degrau'


harmônica, ou de quando fazíamos fogueiras de papel

ainda lá está ela
bailando em nuvens
ou sobre uma quase desconhecida nota musical
ainda lá está ela
no branco e preto da varanda da velha casa
aonde íamos escondidos após o por-do-sol
amar e ruminar o mundo que queríamos
maldizer o mundo real
ainda lá está ela 
a falar de seus instrumentos musicais preferidos
a tirar do bolso uma poesia da semana passada 
falando do seu jeito sobre esperança
medos
e coragem
por fim rasgava o texto
escrevia outro
comia o novo
ainda lá está ela
alegre e triste
a limpar a gaita entre os cabelos
cor de milharal já em tempos de colheita
a tocar a gaita
alegre e triste
a pedir-me que jamais a deixasse 

H. L. C.

da série 'coisas que falam de outras coisas'



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

carta minha, d'outro dia, à moça que toca jazz


Apareceste como uma canção
da Srta. Billie Holiday, 
daquelas que as notas e a voz vão se aproximando de leve,
devagarinho,
e, depois de 30 segundos,
tudo faz sentido:
uma linda mulher com flores brancas 
enfeitando os cabelos,
abraça-me,
efusivamente,
numa esquina secreta,
e o dia torna-se inesperadamente
interessante...

H. L. C.

da série 'a bailarina'


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

flauta ao mar

um jardim secreto
não te atrevas
meia-volta
vai-te
não é teu
folha dobrada
guardada
esquecida

H. L. C.

da série 'coisas que falam de outras coisas'

sábado, 17 de fevereiro de 2018

rosto magro sob luz noir

sob a penumbra macia
dos cabelos negros bagunçados dela
erro o seu nome
desconcerto-me
mas não erro o caminho
não erro o seu rosto
não erro o seu beijo
e rimos
pelas vielas

H. L. C.

da série 'carbono 14'


segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

janeiro

aonde pensas que vais
olhar meu olhar meu olhar meu olhar meu
aonde pensas que vais
no olhar meu no olhar meu no olhar meu

H. L. C.

da série 'coisas que falam de outras coisas'

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

poema estapafúrdio

chamo
não eram estes os versos
nem o nome
nunca houve nome mais doce

H. L. C. 

da série "coisas que falam de outras coisas"

sábado, 13 de janeiro de 2018

janus

siga
pequenina de olhos verdes
o caminho prateado desta lua
a alegria tua
enche-me de coragem
presença-gosto-de-pitanga-vermelha
reverberas
verbênia
já é dia
imenso pomar de flores
fazenda de promessas
floresta de cores
ei-la
pequenina de olhos tão profundos
flutua
visagem
doce apologia
tão pia

H. L. C.

da série 'coisas que falam de outras coisas'

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

janela

ali fomos felizes
havia um jardim
e um chafariz
no meio dia dos dias de domingo
os pássaros vinham ao nosso encontro
nas manhãs de inverno
não se via nada pela janela
branca que sempre estava de névoa
então tomávamos café
até o tempo abrir
às vezes ouvíamos música
ou trabalhávamos em casa
ou nem íamos à casa
às vezes um "sair por aí"
às vezes nos divertíamos muito aborrecendo gente
ou fazendo gente sorrir
um dia inventamos pintar um quadro
um quadro moderno
desses pintados por gente que não sabe pintar quadro
outra vez inventamos escrever um poema a 4 mãos
e lembro-me ainda dos primeiros versos
ou já não sei se agora estou criando eu próprio
esses versos
"teus cabelos cor milharal já em tempos de colheita. refúgio dos meus pássaros. de um rapto. amei. como o fogo do desejo de uma amante tísica. como não acontece mais."

H. L. C.

da série "coisas que falam de outras coisas"