domingo, 16 de outubro de 2011

A señorita Pola

Sentou-se à mesa. Tinha-se habituado naqueles dias a freqüentar aquele bar. Mas agora sozinha, havia soltado os cabelos escuros de forma a ocultar o rosto branco, do risco do contraste produzido pela meia luz do ambiente. Uma garrafa de rum fazia-lhe companhia.
Já estava pela metade e seu coração palpitava mais forte. Duas ou três lágrimas despediam lentamente e encontravam demorado amparo nas curvas de seus lábios. Fitou, compenetrada, o casal de dançarinos embriagados de Carlos Gardel. Mas não com inveja ou admiração. Desdém. Tinha-lhes profundo desprezo pelo desconhecimento da inevitável transitoriedade dos momentos felizes.
De repente, veio-lhe na memória o motivo de estar ali: O semblante dele. Mas também se recordou do seu próprio. Sabia que algo acontecia em seu interior. Há muito já não era a mesma. Já não sabia se queria as mesmas coisas. Preocupou-se: passou-lhe pela cabeça que já não era mais dona de si. Num sentimento dúbio, teve saudades e profunda repulsa do contentamento inicial da viagem. Os primeiros dias de hotel, o estilo peculiar de ambos praticarem o turismo. Nada convencionais. E concluiu que era justamente isso. Sim, naquele momento compreendeu o teor da angústia que a atormentava. Levantou-se. Caminhou até a janela de vidro, avistou dali o andar onde estavam hospedados. Luz apagada. Pensou estar começando enlouquecer. Havia viajado sozinha. Completamente sozinha nos últimos dois anos. Não havia ninguém em seu quarto.
Lembrou-se da casa no Brasil. De sua biblioteca. Da mesa de trabalho. Teve dúvidas se ainda existia um porta-retratos. Teve dúvida de si mesma. De tudo. Voltou à mesa. Mordia lentamente os lábios. Estava frenética. Tratava-se de um transtorno contido. Quis afrouxar um pouco a gola do casaco. Veio-lhe à memória o semblante dele. Veio-lhe o tango. Naquele momento detestou vigorosamente todos os argentinos. Pensou em mudar. Mas mudar para quem, ou para onde? Verdadeiramente, pensou ela, nunca tivera feito nada de útil em sua vida. Sua única certeza, naquele momento, era a terrível inveja que nutria da senhorita Pola.

Hedre L. Couto.

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