quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

"tu sais, je crois qu'il va pleuvoir"

final da manhã.
Isabel cuidando do seu jardim.
usava camisa manga-longa-de-botão e jeans
dobrado até a metade das "canelas".
enfim, ali estava ela:
de terra tinha as mãos cobertas,
alguns pontinhos de suor desciam-lhe pela testa,
cantarolava baixinho, quase imperceptível, alguma canção.
foi o primeiro dia que a vi.
instantes depois, chovia muito.

H. L. C.

da série 'Isabel'


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

o relógio de Isabel

ela é tão Isabel
e quando quer uma coisa
olha-me com seus olhos derramados de mel
ela é a mais doce Isabel
seu rostinho magro
seus olhos luminosos
seu cabelo chanel
Isabel
que leva tudo ao pé da letra
nunca se esqueça
de mim

H. L. C.

da série 'Isabel''

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

carta em linha reta a Fernando Pessoa




caro Poeta de rosto engraçado,


como te tens saído com este inverno, que dizem danado?
outro dia, não faz muito, topei-me no meio da rua com um conhecido teu e meu.
sujeitinho desagradável, desses tipos que nem respira, fala de si próprio apaixonado e sem parar.
poeta, tu que tens andado na boca de tantos,
que tens sido tão péssima e porcamente compreendido,
que tens despertado falsos intelectuais e fúteis alaridos,
como te encontras, 
animado?
aborrido?
espero que estejas bem!
e um muito bom frequentador da tabacaria!
moreover, a quanto tempo não vou eu à tabacaria.
bom, nem vou contar-te do Fidel.
bom, tu também não te importarias.
ouviste falar do Trump? este dizem que é leitor daquele poetazinho... o chileno... como é mesmo o nome...
ah, sim, como não, o Neruda. agora, estão parindo filmes do Neruda por todas as partes...
mas, tu também não te importarias...
ô, Pessoa... tenho eu pensado em aderir a estes óculos redondinhos...
no início achava-os jocosos em demasia,
depois, meio afeminados...
bom, hoje já tempos passados,
vejo que eles tem um aspecto que confere um certo caráter de eloquência, que produz sucesso certo,
como diria o Nelson Rodrigues: "sucesso batata".
tenho pensado em ir a Lisboa, ô, Pessoa.
ah uma nova fadista, da mouraria,
mas, lá com isso tu também não te importarias.
aqui, no brasil, vamos num calor da zebra...
by the way, estamos todos na letra "z", aqui no brasil.
o preço do vinho do porto, p. ex., com o aumento da carga tributária, foi a estratosfera.
mas estas bobagens todas não tem a menor importância, ô, Pessoa,
o que importa realmente é a tua poesia.
mas, depois dos leitores que tens angariado pelo mundo,
já lá nem sei se com ela tu te importarias.
meu dileto poeta de tantas alcunhas, aqui eu faço minhas despedidas,
alertando-te que devias
diminuir um bocadinho das tuas mil manias, 
pois,outro dia, 
ouvia certa médica asseverar 
que estas coisas dão refluxo, gastrite, azia!
adeus, até mais ver!
au revoir!

H. L. C.

da série 'cartas aos poetas amigos'





sábado, 24 de dezembro de 2016

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Who's Tilim Tim?

lábios finos
pequenininhos,
da fadinha Sininho,
no espelho a maquiar-se.
cuidado com a chuva, Sininho.
vai pela sombra, Sininho.
olha o disfarce, Sininho.
não vai perder a sua candura,
a sua quentura,
no meio do caminho
da terra do nunca.
lá, agora, há um pedágio,
no meio do caminho.
sabia disso, Sininho?
para lá entrar
terá de pagar.
não com dinheiro:
terá de dançar.
terá de cantar,
terá de plantar bananeira,
terá de contar
um milhão de deliciosas mentiras sem piscar a sobrancelha.
tente, doce Sininho.

H. L. C.





terça-feira, 20 de dezembro de 2016

contando bazófias e gabarolices

ah, cidade bizarra!
cidade gambiarra.
cidade algazarra.
cheia de chafarizes
vazios/ ou cheios de pobreza e água suja.
qual a finalidade
de uma cidade
ter uma praça chamada piedade?,
que dá num beco chamado rua da forca?
cidade louca/
cidade pouca/
cidade rouca/
cidade presa
cidade vesga
cidade lesma
ah, cidade
cidade baixa
cidade alta
cidade velha
cidade chinela
cidade só nas telas das aquarelas
espera?
esperar mais o que, cidade?
cidade sem bondade
cidade sem verdade
cidade chucra
cidade puta
cidade?
apaguem as luzes sem alarde,
por favor.

H. L. C.

da série 'últimas poesias'

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

maybe so nº 2 ou anche la dolce vita

trililili-trililili-trililili
trililili-trililili-trililili
a essa hora?
a essa hora?
trililili-trililili-trililili
trililili-trililili-trililili
trililili-trililili-trililili
trililili-trililili-trililili
perdeu a hora?
já me vou embora!
quer café?
chove lá fora.
banana frita?
isso me irrita.
o café? a banana frita?
o barulho da bica.
que dia é hoje?
primeira-feira!
ah, é... a...a....tchinchin!!!
sétima-feira tenho compromisso.
você quis dizer: temos compromisso?
isso.
tipo isso.
será um risco.
será um riso.
chove muito, lá fora...
quer café?
isso me irrita!
o barulho da bica...
perder a hora!
café?
passa a colher.
eu tive pensando...
... ciau!
... ciau!

H. L. C.

da série 'carbono 14'


sábado, 17 de dezembro de 2016

receita

o verdadeiro amor
não carece de perguntas:

tu não me perguntas nada.
eu não te pergunto nada.
nos beijamos, e pronto!

o dia amanhece...
seguimos juntos a vida...
tu não me perguntas patavinas.
eu não te pergunto carambolas.
nos beijamos, pelos anos afora,
e pronto!

compreendes?
só os tontos perguntam...

H. L. C.

da série 'últimas poesias'

interjeição

vivi na tribo.
mas, não era índio.
vivi entre os quase-ameríndios,
do recôncavo cigano.
e, neste ano,
jogaram-me na chamada civilização.
o costume da tribo, contudo,
deixou-me a cabeça torta.

H. L. C.

da série 'últimas poesias'

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

maybe so

perdeu o avião.
não veio.
chegará daqui um mês.
talvez.
mas, disse - quem sabe amanhã chegará?
ou depois?
que tem muito ventado por lá.
que a chuva vem e vai.
que tem ela tido muita pressa.
que lá, o inverno promete
ser daqueles.
de congelar os "ais",
dos casais.
"sem mais."
assinou-se.

H. L. C.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

proposição

que a tua face risonha
disponha
da minha face careta
que o teu "achar graça"
ora tímido
ora largo
demova minha atual e aversa mania
de estar afasia
de estar fado
de estar paralepipidado
meu Deus!
ando tão escaldado
que eu nada sei sobre essas coisas todas de árvore-de-natal

H. L. C.

da série 'últimas poesias'

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

advérbios da esquina

não
ainda não é a carta do baralho
não ainda não é o ranger do assoalho
não
ainda não é o pão
ainda não é o cão
ainda não é o chão
ainda não é a imagem da casca da tangerina
levada, ávida, pela correnteza da enxurrada
numa rua do centro de uma capital
não
ainda não é a nau
ainda não é o porrete na mão de um valete
ainda não é a rua do catete
ainda não é o sorvete
de caldo de cana
ainda não é a orelha do livro rasgada
molhada pela chuva da madrugada
pobre Ana
não
ainda não é a rainha
ainda não é o rei
ainda não é o nano
ainda não é a casa da esquina
ainda não é o olhar bobo da menina
a pedir algodão-doce
ainda não é o tintintintilhar dos talheres
ainda não é o chafariz
ainda não é o pé de coentro
apressado a sentir-se tempero
ainda não é a delação do coração
ainda não é a fila do avião
ainda não é o ninar
ainda não é o de-mamar
ainda não é o fogo
ainda não é o pescoço da linda girafa
ainda não é a coleção de garrafas
ainda não é a matilha de gente
toda igualzinha com a mesma cara
ainda não é o aconchego da tardinha
ainda não é a cultura
ainda não é a sutura
ainda não é a banda
a xanda
a métrica
o método
ainda não é o ainda
aunque não seja o ainda
ainda que não seja a pequena velhinha
a pequena velinha
a pequena sozinha
não
ainda que não seja a verdade
o tempo segue
segue leve como a casca tenra da tangerina
flutuando pela enxurrada
ainda

H. L. C.

da série 'últimas poesias'





dia normal

o dia amanhece
e bem cedinho
de mansinho
lá vai ela desfilar
na calçada de pedra portuguesa
que leveza
essa menina
amarela
magrela
como é bela

H. L. C.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

que vinha do céu

hoje,
apenas uma estória afável.
o gosto da fruta-chocolate.
o malte.
as borboletas.
dois lances d'água, formando um arco-íris.

H. L. C.

da série 'últimas poesias'

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

posfixo

e então,
ela me disse que gostara muito da frase,
gostara muitíssimo da frase,
porque a frase era incapaz de criar
qualquer imagem,
era incapaz de criar qualquer imagem:
era uma frase nua.
arrependeu-se.
consertou-se.
 - que bobagem eu disse., corou-se.
eu já não estava lá.
isso eu soube depois.
 - de quando em quando podíamos falar?, bradou ela.
farei uma viagem. penso em fazer uma longa viagem, redargui-lhe eu.
 - sei aonde vai... sim, sei aonde vai..., corou-se, novamente, inquieta, depois absorta.
de tempos em tempos em vou, você sabe. eu já contei-lhe que tive, uma vez, uma poesia
e a perdi, mesmo tentando segurá-la, avidamente, pelo rabo?, inquiri a ela, de súbito.
- e poesia tem rabo?, interessou-se, bebendo coca-cola.
(muito enfático) sim. as que se parecem com estrelas do mar tem, sim.
- sei aonde vai..., recomeçou, de olhos fechados. depois abertos. depois fechados, piscando.
de quando em quando eu vou, você sabe., olhei pro lado oposto e finalizei.
ela sentiu tristeza. mas disso, eu apenas soube muito tempo depois.

H. L. C.

da série 'últimas poesias'




no tempo das cerejeiras

oh, céus!:
a vida estranha.
tudo culpa da latrina do Duchamp.
latrina do Duchamp.
latrina do Duchamp.
nunca mais conversei com Beckett.
nunca mais falei a Tchekhov.
frases, frases,
todas as frases, agora, serão tão vazias quanto aquelas
de Liev Tolstói?
Nicolai, Nicolai... Gogol, Gogol, vamos tomar um bom vento na cara, Gogol!
Turgueniev, ah, Turgueniev, tens o único sorriso no qual acredito, Turgueniev.
Allan Poe, seu Kafka de calças curtas...
Kafka de calças curtas...
Kafka de calças curtas...
Talvez Nabukov, sim, Nabukov e Wilde, aquele exótico,
nos ajudassem a superar esses tempos tão birutas...
qual a melhor idade para um homem morrer, Anton Pavlovitch?
tu es um excêntrico. sim.
sim, excêntrico!
um excêntrico mascate de palavras.
sobre a minha pergunta, de outro dia...
responda minha pergunta, Anton Pavlovitch.
saiba que aquela obra tua me causa imenso horror.
me destroça a alma.
como o tempo destroça a alma, Anton Pavlovitch.
ah, o tempo destroça a alma.
o tempo que destroça a alma.
o que terá passado com Maiakovski, aquele pequeno filho da Georgia, Anton Pavlovitch?
eu queria tocar piano, agora, Anton Pavlovitch,
queria dizer que o ar está puro e que a tempestade passou.


H. L. C.

da série 'últimas poesias'

domingo, 11 de dezembro de 2016

poema essencial

as manhãs de domingo,
todas as bonitas manhãs de domingo,
deviam ser batizadas
com o teu nome.
sem pressa:
é manhã de domingo...
sem pressa:
é manhã de domingo...
sem pressa...
é teu cheiro,
no cheiro de todas as bonitas manhãs de domingo...

H. L. C.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

carpida, dorme ou Bonaparte vai te pegar...

bebendo instrumentos musicais
bebendo cinema
bebendo blues
bebendo Balzac
bebendo os anunakis
bebendo a biblioteca inteira
de um só gole
aí vem a garotinha curiosa
carpida
cismada
brava
cheia de vida
perguntadeira
feito o diabo
em noites de luar

H. L. C.

da série 'últimas poesias'

rabiscando

qualé o pretexto do poema?
qualé o enredo do poema?
qualé a personagem do poema?
qualé a cor do poema?
qualé o tom do poema?
qualé a cadência do poema?
qualé o leitor do poema?
qualé a primeira palavra do poema?
como vencer o nó, no meio do poema?
como findar o maldito poema, que empaca
ou dispara desembestado?
é melhor parar por aqui, ou seguir
pela página ao lado?
como saber se o poema é poema,
e se vale a pena?
"é muito simples",
diria Ferreira Gullar:
"haverá poema...
se houve o espanto".

H. L. C.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

bilhetinho em guardanapo, após o jantar

amor de perigo abstrato
amor-quase-fato
amor em 5 Atos
com prólogo
epílogo e tudo
amor casto
amor gasto
amor chato
["Amor", eu parto!
farto.]

H. L. C.

da série 'últimas poesias'

etimologia

o prefixo "ana"
significa "não"
ana de não
ana
de amor anão

H. L. C.

da série 'últimas poesias'

prontuário

ando tonto
ermo
enfermo
de coração lipoaspirado
estafermo
estive na banca de jornais
pois antes fui jornaleiro
pela manhã
pela tarde
pela noite
fui jornaleiro
e nem mais há revistas
caminhei perdido pela pista
sem pista
sem notícias do alquimista
que triste
que chiste
a gaiola sem pássaros
não vendem mais alpiste
nestas paragens
achei uma passagem
secreta
alerta:
tsunami.

H. L. C.

da série 'últimas poesias'


quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

sobre "moonlight sonata", em dias de pés descalços

carta minha, d'outro dia, ao Sr. Ludwig van Beethoven:


[Indispensável poeta,
há uma mulher,
chamada "Vida",
que manifesta imenso apreço por uma de suas sonatas.
podia-se mesmo dizer que,
a dita mulher,
é a encarnação da dita sonata.
ao entardecer,
ou mesmo no amanhecer,
sempre ouvindo sua música,
com uma taça de vinho
ou uma caneca de café,
a estranha mulher
cala-se
com o olhar perdido,
no longe do mais longe;
seu espírito parece escapar
pelas extremidades dos dedos e dos lábios.
liberta-se por um quarto de hora;
vai a terras e céus distantes;
ao depois, quando retorna,
pergunta-me "o que é a vida?"
e eu, que posso eu dizer a ela, 
senhor Beethoven?
silencio, apenas. 
nunca fui bom com essas coisas de palavras.

Ass: H. L. C.]

da série 'cartas aos poetas amigos'